sexta-feira, 1 de maio de 2009

Assim é a Vida

"Olha pro céu Claribela!" veio assim a mamona-pedra com anúncio embutido bater na cabeça de Claribela, que nesse momento estava ali, observando uma trilha de formigas bem à frente dos pés. Era assim Claribela, sempre com as vistas para baixo, gostava de observar os seres da terra, formigas, minhocas, besouros e afins, numa busca pela compreensão de suas geometrias. Estava assim Claribela quando o projétil veio singrando os ares para atingir resoluto seu cucuruto, e logo estava de pescoço curvo ao contrário, os olhos imensos, quase jaboticabais, feridos pela força do sol a pino do meio dia. Alguns podem se perguntar se antes mesmo dessa ação não existiu uma certa torção para os lados, uma certa raiva curiosa em relação a seu algoz. Aí é preciso conhecer um pouco mais o que vai dentro de Claribela: tinha a personalidade mansa de boi de pasto, lenta e preguiçosa como as tardes de verão, destituída de maiores arroubos e grandes reações.


Vamos voltar agora à cena, agora que já demos tempo a Claribela de subir as mãos à fronte numa malfeita continência dupla, as jaboticabas já acostumadas à claridade. A boca adquiriu um aspecto de papa-moscas, o corpo parece tremer. Sim, porque é como se um mosquitinho qualquer tivesse picado suas entranhas, proporcionando como por milagre idéias de pouca inteligência, já que até este presente momento Claribela carecia um tanto de imaginação. Enquanto o veneno corre em suas veias provocando comichões, Claribela percebe que talvez o tapete azul sobre ela não será de todo estático, que promete minúsculos e quase imperceptíveis movimentos, e se pergunta que gênero de animaizinhos rastejantes podem ali viver. A cabeça dura de Claribela matuta durante esse dia todo, essa noite toda, e logo nas primeiras horas da manhã seguinte voa longe entre os capinzais, procurando modos e meios.


Primeiro, e diríamos acertadamente, escolheu as árvores. Claribela passou dias (e noites também) abraçada a seus troncos largos, a face contra a madeira áspera reconhecendo e familiarizando-se às reentrâncias. Quando bem crescida dentro de si a coragem, passou aos galhos, não sem muito esforço e alguns arranhões, visto tão enraizada que era. Aos poucos foi adquirindo segurança, passando a alturas mais ousadas, logo chegou às copas. E ali Claribela ficou.


Passava dias a colher com seus dedos gordos de infância o algodão das nuvens, a comer do bico de passarinhos, beber água de chuva e, quando chegava a fria madrugada, a cobrir-se de folhas verdes. Era, na sua pequenez, feliz assim.


Cada vez mais Claribela estava ausente. Não estava na praça, não estava na igreja, não estava na escola. Mas devo dizer que, infelizmente, não fazia falta: sempre fora a menina do canto da sala e ser filha de pais de sete filhos tornava-a quase inexistente. Chegou ao ponto em que mais ninguém lembrava-se dela, havia desaparecido de todas as memórias, havia mesmo nunca existido. A Claribela também não lhe fazia falta, tão bem alimentada estava.


Porém o Tempo, esse velho de barbas brancas, pés chatos e força de 400 cavalos, nem por isso deixou-a de lado. Passava diariamente para desejar-lhe bom dia. Passava também para desejar-lhe boa noite. E passou. E passou.


O peso da carne também. A pesar nos apoios cansados, Claribela tinha febres noturnas, ouvia vozes que lhe gritavam: "Desce, Claribela!". Inicialmente em seus devaneis alucinatórios pensou tratar-se das formigas, depois das minhocas, depois dos besouros, depois dos afins.


Um dia...(pausa poético-suspensiva)


Claribela desceu, casou, teve três filhos (anti-clímax).


E foi trabalhar como funcionária pública no Departamento de Pragas Urbanas da cidade.



FIM



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