domingo, 24 de maio de 2009

Quando pequena me alimentava de pimenteira brava, dizia minha avó, comia jiló imaginário, era marrenta, cruzava os braços, travava os lábios e me recusava a chorar. Recusei peito e leite materno, aprendi a tomar café quente, frio ou gelado com meu avô, a brigar com irmão mais velho, escalava parede subindo pelos batentes das portas, corria na rua sem camisa, andava de carrinho de rolimã. Estourei dois dedos em caixa de espoleta, explodia formigueiro no sítio, subia no telhado, subia em árvore pra pular segurando folhagem achando que ia voar, cortava cabelo das bonecas. Corri com febre alta, ralei joelho e infeccionou por meses, peguei sarampo com 16 - o que estragou minha saúde mas tudo bem - já dei soco na cara de namorado, mordi lábio de outro até sangrar, fui segurada pra não pular em pescoço de diretor, arranquei maçaneta de camarim, quebrei box de banheiro com chute.
Hoje sou calma, gosto ainda de chupar limão azedo, comer mostarda de colher, falar palavrão a torto e direito quando puta da vida, fazer serviço de manicure com os dentes, cutucar casca de ferida. Hoje eu choro de raiva, choro também de dor sentida, ainda tenho ganas de pular em pescoço alheio, mas me tornei civilizada, enquadrada, burocrática. Estou voltando ao ciclo da gripe constante.

sábado, 23 de maio de 2009

A caminho de casa parei naquele posto, entrei no Banco, e lá, solitária, meu cartão travou no caixa eletrônico. Tive um segundo de sensação de Deja vu, lembrei de vc, Joãozinho, a gente se encontrou pelo menos umas três vezes na mesma situação, no mesmo lugar, tão perto do seu trabalho... Vc pediu licença e explicou que naquele caixa tinha que colocar o cartão devagar, tirar com a mesma velocidade, que dava certo. Eu não tenho pensado muito em vc, acho que a mente tenta colocar os fatos dolorosos pra debaixo do tapete, e de vez em quando bate um vento, a aba levanta e a gente vê o que tem por baixo. É que foi tudo tão absurdo, a gente ficou sabendo mais de um mês depois, ninguém teve coragem de avisar, de divulgar as palavras trágicas, de dividir a dor. Eu não te via fazia muito, fiquei um tempão sem ir na oficina, ou porque não tinha carro, ou porque ainda não precisava, e ainda não acredito na história. Eu te vi ali do meu lado no caixa eletrônico do banco absolutamente vazio e vc estava com os cabelos ainda no ombro, aqueles cabelos tantas vezes longos, invejáveis por conta do brilho e do negror, cabelos que qualquer mulher daria a vida pra ter. Os mesmos olhos amigáveis, o mesmo sorriso que iluminava o dia mesmo quando apresentava notícia ruim, mesmo quando cheguei totalmente sem freio, sem pastilha, sem disco na oficina. A gente mal se conhecia mas talvez pelos nossos pais parecia que éramos amigos de infância, dava vontade de passar a tarde batendo papo, eu te contei tantas coisas, que ia pra Portugal e vc como bom "filho de" me avisou que os portugueses eram tapados, que tinham viseira impedindo a visão periférica, reclamei de trabalho, da vida, de tudo. E vc com aquele jeitão de sempre, na boa, falava de namorada, de literatura, enquanto analisava motor. Vc era um dos ursos que encontrei pelo caminho, alma boa, coração de ouro, gestos de gentleman. A gente teve o mesmo estudo mas vc optou por um trabalho mais braçal, talvez porque gostasse de consertar as coisas, de montar e remontar peças, de lidar com mecanismos, com coisas que podem ser arrumadas. Eu senti sua mão ali no cartão, ele finalmente passou e eu saí com lágrimas escorrendo por baixo dos óculos escuros, ainda não posso acreditar que foi vc que fez isso contigo mesmo, não posso

Ursos


Ursos são fofos, grandalhões, assustadores. Desde nossa mais tenra infância habitam nosso imaginário como objeto de desejo (quem nunca quis um ursinho de pelúcia?). Nunca me esqueço do filme O Urso de Jean Jacques Annaud, na minha adolescência, chorei feito uma condenada...

Embora animais selvagens, os ursos são na deles, não costumam atacar a não ser quando ameaçados, incomodados, quando têm seu território invadido, ou em caso de extrema fome. Aliás, a maioria dos ursos alimenta-se de insetos, frutos, peixes e pequenos animais. Não costumam caçar seres humanos.

Os ursos estimulam nossa vontade de abraçar, de apertar, mesmo porque somos várias vezes bombardeados com aquelas fotos em que reconhecemos gestos e atitudes tipicamente humanos. Mas aí é que mora o perigo. Apesar do tamanho, dos olhos dóceis e da aparência bonachona, são ágeis e certeiros no ataque: possuem garras enormes e afiadas, faro apurado, além de, é claro, incrível força física.

Conheci 04 ursos na minha vida:
um na família;
outro particularmente letal e traiçoeiro;
outro que sumiu do mundo de forma trágica;
e, bem...outro que não sei se tenho certeza absoluta ou conhecimento pleno para dizer se é realmente da espécie.

Pra ser honesta, é difícil ser imparcial, já que simpatizo bastante com os ursos: creio que devem ser ótimos cobertores não só de orelha, gosto do jeito manso que esconde a fera, aprecio me imaginar sumindo no pelo macio.


sexta-feira, 15 de maio de 2009

Gripe

Ficar fisicamente frágil.
Drogar-se.
Exigir que a mente e a vontade sejam ainda mais fortes para poder sustentar o corpo.
Odeio me sentir assim, porque nessas horas é difícil resistir ao desejo de me deixar.
São nesses momentos que sou tão acessível, tão fácil de ser subjugada.
Se ele me abraçasse, se me sustentasse, ou apenas tocasse meu rosto com a mão, não teria forças para resistir.
Mas seus olhos não atravessaram a névoa, não me viram por trás do véu da indiferença.

Ingenuidade

As pessoas acham que sou ingênua.Acham que porque sou na boa, às vezes polida, às vezes cuidadosa, não sou capaz de ver as coisas, que sou "contaminável", que quando estouro não é por mim. Eu sei muito bem o que faço. Me conheço bem demais para saber o quanto dar murro em ponta de faca é meu mote, o quanto sou teimosa, o quanto sou irascível, o quanto opto ou não pela crueldade. Aqueles que me acham ingênua são os que se deixam levar pela primeira impressão, o pela própria. Não sou gado, aí está a diferença. Não vivo em verdes prados mansamente.Talvez minha rebeldia seja ingênua então?
Uma das coisas que fazem parte do ofício do ator é compreender "as razões"(e não necessariamente justificar) do pior assassino. Ver as pessoas por trás das máscaras. Talvez haja em mim a ingenuidade de acreditar que as máscaras possam cair, que mesmo a mais forte couraça possa ser perfurada, minada. E o mundo não é assim, as pessoas não são assim, afinal. As pessoas não estão interessadas no que está a seu lado, no que está além da ponta do seu nariz, no que ultrapassa seu umbigo.
E por incrível que pareça, me preocupo com a saúde e bem-estar desses desgraçados.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Tango

Vamos cruzar as pernas, meu bem
Vamos fazer el ocho
Vamos deslizar pelo tablado
Vou enganchar seus joelhos com minhas pernas rendadas
Vou apoiar meu corpo sobre o teu
Espalme a mão na minha lombar
Pratique sua maleabilidade na minha cintura
Vamos alternar compassos, meu bem
Vamos riscar a madeira
Vou descobrir minha nuca
Vou arrastar mis tacones
Segure minha coxa contra seus quadris
Empurre meu rosto pra longe do teu
Me fira com seu punhal
Vou te sangrar com meus sussurros

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Tarde Demais

Você chegou tarde demais para
que eu não tivesse armadura
que eu não tivesse cicatrizes
que eu não tivesse celulite
você chegou tarde demais para
que eu fosse ainda inocente
que eu não fosse Frankenstein
que eu não me magoasse
que eu não entendesse suas razões
você chegou tarde demais para
que eu fosse criança
que eu tivesse coragem
que eu me entregasse
Você chegou tarde demais para
que eu tivesse a mesa posta
que eu tivesse a cama arrumada
que eu fosse só sua
Você chegou tarde demais para
que eu me servisse
de corpo e alma
na bandeja.

Cedo Demais

Você chegou cedo demais para
que eu tivesse escudo
que eu tivesse marcas
que eu tivesse quadris
você chegou cedo demais para
que eu não fosse inocente
que eu fosse inteira
que eu me magoasse
que eu entendesse suas razões
você chegou cedo demais para
que eu fosse madura
que eu tivesse coragem
que eu me entregasse
Você chegou cedo demais para
que eu tivesse a mesa posta
que eu tivesse a cama arrumada
que eu fosse só sua
Você chegou cedo demais para
que eu me servisse
de corpo e alma
na bandeja.

Retrato Falado (mais bobagens?)

Fiz um retrato falado de você na minha mente: 1,84, ou mais, visto me sentir assim pequenina. Não sei se gordo nem magro, do seu corpo só consigo visualizar as extensões: braços firmes (que imagino ao redor dos meus ombros?) terminando em mãos grandes, famintas. Abaixo da cintura fica difícil falar, baixo, ou melhor, levanto os olhos na linha do infinito cheios de pudor mudo(?) e rubror na face. Posso falar mais do rosto largo, dos lábios cheios de deboche. O nariz? Ah, não sei, tenho vergonha de olhar detalhadamente, de me aproximar sem cuidado e cair na armadilha dos olhos já rodeados de algumas ruguinhas, mas ainda assim de lince, ainda assim magnéticos, carcereiros.

Supermercado (filosofia besta)

As coisas que mais quero nem sempre estão disponíveis na prateleira. Quando estão, geralmente vêm com um preço muito mais alto do que posso pagar.
Volto pra casa, economizo por uns dias, passo fome, coloco moedas num porquinho imaginário.
Um dia volto confiante, quase orgulhosa da minha contenção.
Mas aí ou perderam o prazo de validade, ou foram retiradas de circulação, ou foram levadas por outra pessoa.

domingo, 3 de maio de 2009

O Cinto de (In)utilidades

Pequeno conto moral sem moralidade alguma
Gretel era a princesa do Reino da Carochinha, um reino distante, do distrito dos contos de fadas. Não era feia, nem tampouco bonita, o que, no seu caso, bem pouco importava, visto se tratar de quem se tratava, objeto de desejo em 09 entre 10 contos do gênero. Mas se tinha algo em que chamava atenção, era no gênio: ao contrário das companheiras de classe, Gretel era dotada de língua afiada, mau-humor dos diabos, atitude bélica e uma esquerda considerável. Batia qualquer homem, gigante ou dragão em qualquer embate.
Como era...princesa, chegou a época em que estava mais do que na idade de casar, ter filhos, virar rainha ou coisa que o valha. Sua fama era notória não só no reino mas também em outros, diariamente chegavam principes de todas as partes do mundo para desafiá-la em combate. Acabavam com um belo pontapé no traseiro!
Não pensem vocês que Gretel era bruxa disfarçada de princesa, Gretel era fundamentalmente doce, dada a paixões e sonhos tão bobos como quaisquer outros, só não tinha lá muita disposição para mesuras, delicadezas, belas palavras... Um dia...
Um dia estava Gretel sentada às margens do fosso do castelo, quando de surpresa chegou um mancebo em seu alazão.Não se fez de rogada, triscou os saltos do sapatinho de cristal no cascalho, ao que foi respondida com as esporas das botas sete léguas do donzelo.
Bom, se tinha uma coisa que Gretel havia aprendido nestes anos todos, era avaliar com competência seus oponentes: ali, não era o caso de puxar encrenca imediata, estava mais para um vale-tudo discreto. Isso feito, acordaram e assinaram os termos do combate e Gretel seguiu para dentro, tomou seu cinturão mágico, e passou a preenchê-lo com as seguintes armas:
- Luvas de boxe
-Arco e Flecha portátil (hum...Só aplicável em caso de pontaria certeira e Gretel estava meio destreinada, mas vá lá...)
-Tresoitão (Idem acima)
-Canivete suiço ( só para abordagem corpo-a-corpo)
-Casca de banana ( só no caso de contar com o elemento surpresa)
-Saco de areia ( no caso de precisar jogar sujo)
-Cápsula sublingual de cianureto (só no caso de abordagem MAIS corpo-a-corpo ainda)
Insatisfeita aproveitou o resto da noite para afiar unhas dos pés e mãos com lixa de aço, enquanto estudava a missiva e traçava mapas(naquele tempo regras de honra e blábláblá ditavam que o desafiante escolhesse o local do duelo).
Nas primeiras horas da manhã seguiu para o bosque.Andou por um dia.Por dois.Por três. Ao entardecer do quarto dia chegou à clareira indicada. Ali, há aproximadamente 10 metros, estava o inimigo. Entre eles estendia-se imenso leito de pétalas vermelhas.Gretel achou aquilo meio ridículo, será que pretendia desarmá-la entre risos, coitado? Well, sem mais delongas vamos ao que interessa, pensou, enquanto avançava descalça, esmagando com suas patas tão macia coberta. E eis que as flores maceradas liberavam perfume inebriante, sugando-lhe as forças. Já no meio do caminho pesavam-lhe demais o cinturão, as armas, ao que, após mais dois ou três passos estava largando-os ao chão. Afinal ainda tinha garras, deveriam lhe bastar.
Quando estava a centímetros do rosto não mais tão odiado(devido o cansaço), sentindo o bafo do outro entrar pelas narinas, procurando em vão alcançar ao menos as cápsulas (longe, longe...), desfaleceu. Não foi ao solo, amparada que foi por pás quase indestrutíveis.
E foi assim que Gretel e seu agora consorte viveram, felizes para sempre(?????), adotando práticas menos carnívoras e se alimentando de frutos silvestres.
FIM





Sentei ali na pedra fria pensando. Foi bom vir pra cá, me afastar. Livrar-me da estática, dos ruídos. Estar sozinha pra mim é conseguir pensar sem interferências, sem o barulho interno, mas principalmente sem o externo. Eu precisava ter ligado para aquela amiga que prometi, mas passei o final de semana com uma quase gripe curtindo muito minha cama, cobertores, minha gata, a casa com cheiro de mãe. Tive vontade louca de voltar em alguns momentos, de me enfiar de novo na poluição sonora, mas agora vejo que foi bom resistir. Sentei ali pra pensar, colocar a cabeça em ordem, avaliar opções, andamentos.
Sinto sim saudades de você, mesmo com suas cartas desaforadas, suas cobranças excessivas, com todas as coisas que entreguei nas suas mãos, muito mais do que eu podia dar, mesmo com sua insegurança irritante, com sua preguiça, sua acomodação, sua quase traição. Sinto saudades da sua bondade. Estou tentando ser boa, estou fazendo todas estas coisas há 04 anos tentando ser boa. Porque há 04 anos não suportava mais não gostar daquilo que tinha me tornado, mas sei também que mais de 03 anos em estado de quase total isolamento, dentro de uma cápsula úmida e escura, não me fizeram bem, me tornei ainda mais tímida, ainda mais anti-social, ainda mais medrosa. Talvez os sonhos não resistam afinal à realidade, embora tenha vivido seus sonhos muito mais do que os meus e tenha tido também calafrios e pesadelos diurnos, e escondido de você até se tornarem insustentáveis. E você está passando por isso agora, e tentando da mesma forma escapar à sua maneira, só que sua fuga necessita de companheira de viagem(que preciso avaliar se vou conseguir ser).
Estou tentando fazer as coisas certas dessa vez, só que sou assim bipartida, eu sempre quis coisas inimagináveis e quase impossíveis, eu sou a pessimista sonhadora, a eterna insatisfeita. Preciso de calma e tormenta ao mesmo tempo. A calma é boa, a tormenta deixa entrar o ruído, os silvos do vento, o uivo dos lobos. A tormenta me leva a pensar em paixões obscuras, em rotas de fuga, em dar abrigo a demônios.
Eu não quero precisar novamente de exorcismo.
O amor existe, está aqui, posso sentí-lo na saudade. Se eu me der paz.
Talvez seja simples assim, talvez eu não necessite de paixões avassaladoras e promessas criadas na minha cabeça, se elas me fazem tão mal, tão viva, mas tão mal.
Você vai voltar e vou te abraçar com doçura, você vai me obrigar a me alimentar direito, me proibir de ir trabalhar tão cedo, reforçar meu sistema imunológico, reconstruir meu abrigo anti-bombas.
Vou levantar agora, vou deixar a pedra em que já sentamos algumas vezes juntos, mas muito mais eu ocupei-a sozinha, vou escrever aquele e-mail com mais de três palavras que você me pediu, que estou te devendo faz dias.

Nina

Hoje acordei com o sol batendo no rosto, um sol fraquinho de outono, mas, ainda assim, O Sol, batendo no rosto. Em cima do peito os 03 ou 04 quilos do meu eterno bebê, da minha personagem de Greta Garbo. Enterrei de leve os dedos na cabeça macia, afagando-a, sentindo uma vontade doida de apertar sua pelúcia rajada.
Que bom seria poder acordar todos os dias assim, com algo que você ama e que te ama sem licenças ao lado, sentindo um coraçãozinho bater junto ao seu.
Trouxe-a para casa minúscula, a mais feinha, mais arrepiadinha, ninguém ia querer.Cresceu dormindo junto a meu corpo, na dobra do cotovelo, meu despertador de lambidas ásperas nas mãos. Nunca me arranhou, nunca precisou disputar lugar com ninguém, seja gente ou bicho. Acostumou-se a tomar água na torneira, quase alagou um apartamento, é arredia e rabugenta com estranhos, é possessiva.
Passei duas noites de insônia culpada quando foi castrada, deitada em concha ao redor do corpinho mole, ministrando água com açúcar através de seringa, refazendo curativo, desculpando-me.
É um ser que não preciso agradar, entende com perfeição meus silêncios... Mesmo quando a abandono, não uma, mas duas, três, várias vezes, encontro novamente seus olhos de mel, sua face de gato-bebê me recepcionando.
Quero levá-la para a nova casa, mesmo temporária, mesmo menor, mesmo mais fria, mesmo mais solitária. Preciso como nunca recuperar esse bem estar.

sábado, 2 de maio de 2009

"Me desculpe por eu ter tomado a iniciativa. Me desculpe por ter almoçado com você tantas vezes. Me desculpe por ter ligado. Me desculpe pela chuva que tomamos subindo a Augusta. Me desculpe por ter acreditado nos seus torpedos. Me desculpe por ter rido das suas piadas.
Me desculpe pelos machucados que sua ex deixou em você. Me desculpe por eu ter vindo logo atrás dela. Me desculpe por tentar entender seu silêncio. Me desculpe por ter dito “sim”. Me desculpe por ter gemido. Me desculpe por ter gozado na sua mão. Me desculpe por eu não ter usado máscara. Me desculpe por querer mais. Me desculpe por supor que você também quisesse mais. Me desculpe pelo que foi ruim. Me desculpe pelo que foi bom. Me desculpe por eu ter subestimado o que foi ruim e superestimado o que foi bom.
Me desculpe por eu ter tirado a roupa. Me desculpe por eu ter mostrado meu corpo. Me desculpe pela cinta-liga que eu comprei só para você. Me desculpe por, em algum momento, eu ter te amado. Me desculpe por, em algum momento, eu ter te achado bonito. Me desculpe por, em algum momento, eu ter acreditado que você era o homem da minha vida. Me desculpe pelos seus erros de português. Me desculpe pelos erros de português da sua nova namorada. Me desculpe pela sua nova namorada achar as margaridas flores menos nobres. Me desculpe pelos 130 km de congestionamento que eu atravessei para te ver. Me desculpe pela barata que eu tive de matar na sua cozinha. Me desculpe por eu ter permitido que você deixasse a TV ligada no jogo do Palmeiras enquanto nós transávamos. Me desculpe por eu ter acreditado que você compreendia meu olhar. Me desculpe por eu ter dito coisas lindas para você. Me desculpe por você não ter entendido um terço do que eu disse. Mas, sobretudo, me desculpe por pedir essas ridículas, inúteis e dolorosas desculpas. Que, naturalmente, não são para você. Afinal, porcos não reconhecem pérolas."
Stella Florence

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Assim é a Vida

"Olha pro céu Claribela!" veio assim a mamona-pedra com anúncio embutido bater na cabeça de Claribela, que nesse momento estava ali, observando uma trilha de formigas bem à frente dos pés. Era assim Claribela, sempre com as vistas para baixo, gostava de observar os seres da terra, formigas, minhocas, besouros e afins, numa busca pela compreensão de suas geometrias. Estava assim Claribela quando o projétil veio singrando os ares para atingir resoluto seu cucuruto, e logo estava de pescoço curvo ao contrário, os olhos imensos, quase jaboticabais, feridos pela força do sol a pino do meio dia. Alguns podem se perguntar se antes mesmo dessa ação não existiu uma certa torção para os lados, uma certa raiva curiosa em relação a seu algoz. Aí é preciso conhecer um pouco mais o que vai dentro de Claribela: tinha a personalidade mansa de boi de pasto, lenta e preguiçosa como as tardes de verão, destituída de maiores arroubos e grandes reações.


Vamos voltar agora à cena, agora que já demos tempo a Claribela de subir as mãos à fronte numa malfeita continência dupla, as jaboticabas já acostumadas à claridade. A boca adquiriu um aspecto de papa-moscas, o corpo parece tremer. Sim, porque é como se um mosquitinho qualquer tivesse picado suas entranhas, proporcionando como por milagre idéias de pouca inteligência, já que até este presente momento Claribela carecia um tanto de imaginação. Enquanto o veneno corre em suas veias provocando comichões, Claribela percebe que talvez o tapete azul sobre ela não será de todo estático, que promete minúsculos e quase imperceptíveis movimentos, e se pergunta que gênero de animaizinhos rastejantes podem ali viver. A cabeça dura de Claribela matuta durante esse dia todo, essa noite toda, e logo nas primeiras horas da manhã seguinte voa longe entre os capinzais, procurando modos e meios.


Primeiro, e diríamos acertadamente, escolheu as árvores. Claribela passou dias (e noites também) abraçada a seus troncos largos, a face contra a madeira áspera reconhecendo e familiarizando-se às reentrâncias. Quando bem crescida dentro de si a coragem, passou aos galhos, não sem muito esforço e alguns arranhões, visto tão enraizada que era. Aos poucos foi adquirindo segurança, passando a alturas mais ousadas, logo chegou às copas. E ali Claribela ficou.


Passava dias a colher com seus dedos gordos de infância o algodão das nuvens, a comer do bico de passarinhos, beber água de chuva e, quando chegava a fria madrugada, a cobrir-se de folhas verdes. Era, na sua pequenez, feliz assim.


Cada vez mais Claribela estava ausente. Não estava na praça, não estava na igreja, não estava na escola. Mas devo dizer que, infelizmente, não fazia falta: sempre fora a menina do canto da sala e ser filha de pais de sete filhos tornava-a quase inexistente. Chegou ao ponto em que mais ninguém lembrava-se dela, havia desaparecido de todas as memórias, havia mesmo nunca existido. A Claribela também não lhe fazia falta, tão bem alimentada estava.


Porém o Tempo, esse velho de barbas brancas, pés chatos e força de 400 cavalos, nem por isso deixou-a de lado. Passava diariamente para desejar-lhe bom dia. Passava também para desejar-lhe boa noite. E passou. E passou.


O peso da carne também. A pesar nos apoios cansados, Claribela tinha febres noturnas, ouvia vozes que lhe gritavam: "Desce, Claribela!". Inicialmente em seus devaneis alucinatórios pensou tratar-se das formigas, depois das minhocas, depois dos besouros, depois dos afins.


Um dia...(pausa poético-suspensiva)


Claribela desceu, casou, teve três filhos (anti-clímax).


E foi trabalhar como funcionária pública no Departamento de Pragas Urbanas da cidade.



FIM



Incendeia-me



Vem
Meenlaçacomseusbraçosrepletosda
saudadedoquenãoéenuncaserádevora
meussoluçoscomseuslábiosgravesme
estrangulacomasmãosnoponto
precisoondepeloencontrapeleinvada
meulabirintocomseuhálitoquenteme
passarasteirameespremaatéesvaziaros
pulmõesmeprovoqueasmamecubracom
gasolinabrinquecomisqueiromeprenda
ospulsoscontraatintabrancadaparede
metatueemcoresvivascomsuasunhase
presasmemastiguemedeixerotanosoloquevou desabrochar
e você vai me colher
e
vou me aninhar
de
mansinho,
algo

quebradiça


sob suas asas.